Sem se aproximar demais

Larissa Seixas
6 min readAug 1, 2020

Chegou a dar um passo para frente como que se fosse abraçar mas parou no meio do caminho e só apertou o olho com um sorriso e disse “obrigada”. Otávio desejou que ela tivesse abraçado mas não disse nada, só a esperou fechar o carro para irem juntos até o seu.

Eram seis e meia da manhã e a vizinhança ainda dormia quando o rapaz do apartamento 302, do edifício Jardim dos Pássaros, na residencial rua das Acácias, imitava a bateria de My Propeller, de Arctic Monkeys, a meia altura. Não tinha passado pela cabeça dele que poderia acordar alguém, na verdade só queria se livrar daquela música que estava presa em sua mente há três dias, e achou que a melhor forma de fazer isso era escutando. Na noite anterior, sem que ele tivesse ouvido em nenhum lugar a bateria começou a tocar e ele cantarolou um my propeller won’t spin and I can’t get started on my on… Pronto, dormiu e acordou com o mesmo trecho se repetindo.

Mas o som, apesar de em volume mais baixo do que fosse indicado ouvir, acabou tendo efeito contrário na senhora vizinha do 301 que tinha um ouvido de tuberculoso. Antes da música acabar ela já estava na porta do rapaz batendo com toda força para quem mais pudesse acordar e acudir, gritando: “Otávio, abaixe esse som ou eu vou ligar para a sua mãe!”.

Otávio tinha vinte sete ou vinte e oito anos e ainda morava com os pais mas, naqueles dias em que poucas pessoas saíam de casa, os dois estavam presos em isolamento numa cidade do interior onde estavam passando férias, quando tudo começou. O rapaz levou um susto com a bateção na porta e desligou o som na mesma hora emendando um “desculpe, dona Lurdes” lá de dentro. Ele não quis ir à porta para falar à velhinha reclamona e esperou tudo voltar ao silêncio. Dentro de poucos minutos, ele podia receberia uma ligação de sua mãe perguntando o que tinha acontecido ou se ele “queria matar ela de vergonha”.

Otávio livre para fazer o que bem entendesse em casa, mas nem tanto. Como não era de fazer festas, seu ideal de casa vazia eram oito horas seguidas de videogame. Mas depois de tantas horas seguidas de diversão, ele passou a espantar a solidão acompanhando as notícias que traziam os números e as histórias de quem estava em risco, do lado de fora. Aquele primeiro mês de isolamento passou devagar e ele logo percebeu que ruminar os mesmos pensamentos poderia provocar outra doença.

Otávio começou a ter episódios de ataques de pânico. Sentia palpitações e ficava nervoso por achar que lhe faltava o ar. Essas alterações geralmente aconteciam próximo da meia noite, quando não conseguia dormir, e iniciavam com alguma dúvida sobre limpeza. “Será que limpei direito as comidas do mercado? Será que a mão que eu lavei ficou bem limpa? Será que a carta do correio estava contaminada?” As perguntas então davam lugar a neurose e quando ele menos esperava achava que estava doente e com falta de ar. Mas Otávio não morria.

Ele passava vinte minutos esperando algo acontecer e quando percebia que nada mudava, ligava para a mãe buscando companhia por telefone. Dona Ruth, uma senhora de cinquenta e oito anos, acordava assombrada com a possibilidade de ser uma notícia ruim mas, depois do alívio, se munia de toda a paciência do mundo para diminuir a angústia no filho. Eles ficavam conversando sobre o que ele estava sentindo, esmiuçando cada sintoma, até Otávio perceber que na verdade não sentia nada e precisava se acalmar. Quando desligavam os dois já estavam caindo em sono profundo e só voltavam a se falar no dia seguinte quando acordavam, por mensagem. O rapaz tinha na mãe uma amiga e sentia muita falta dos cuidados.

Graças a Deus Otávio foi, aos poucos, se acostumando com essa situação de isolamento e identificando os sintomas da neurose porque no terceiro mês de pandemia ele precisou voltar à sede do trabalho duas vezes por semana. Naquela época o Brasil tinha mais de cinquenta mil mortos por Covid-19.

Foram chamados apenas aqueles que não estavam no grupo de risco para recomeçar as atividades, num esforço do dono da empresa de mostrar o pátio do prédio cheio de carros e afirmar a todos os parceiros que as coisas estavam voltando ao normal. É claro que o próprio diretor era do grupo de risco e por isso ficava em casa. Contrariado, Otávio ia às terças e quartas enquanto fazia grande esforço para não se bater com ninguém. Na sua sala, as únicas fontes de calor eram um servidor que ocupava um terço do lugar e o seu próprio computador ligado. A pessoa mais próxima dali estava na outra sala da frente, no setor de marketing, também com a porta fechada.

Letícia era três anos mais jovem do que o rapaz, mas muito mais esperta. No primeiro dia do retorno tentou ir conversar com o colega mantendo a distância indicada mas logo notou que ele não queria nenhum contato. Desde então, por pena, ela passou a acenar para ele pelo vidro da janela, pela manhã quando chegava e à tarde quando ia embora. Ainda assim ele ficava o tempo todo paramentado, com máscara e escudo facial.

Numa quarta-feira, quando Otávio estava andando pelo estacionamento para pegar o carro e voltar para casa, ele se deparou com Letícia parada olhando para dentro do capô do Uno velho cor de vinho. Sem se aproximar demais, ele quis saber:

- Let, o que aconteceu?

- Oi, Oto. — falou indignada apontando para o próprio carro — É esta tartaruga que não quer pegar por nada.

- Hum. Que merda. E você já chamou o seguro?

- Não, eu não tenho não — ela suspirou e olhou pro chão um pouco envergonhada deixando ele sem saber o que dizer. Mas agora que tinha se envolvido, Otávio se viu na obrigação de ajudar a moça de alguma forma.

- Você tem algum mecânico para quem ligar?

- Nem isso. Eu pensei em deixar o carro aqui e pegar um Uber de volta para casa. Aí amanhã eu resolvo porque estou muito cansada. E este carro já está me irritando, sabe?

Otávio percebeu que Letícia estava bastante incomodada, ela falava com voz de quem ia começar a chorar, e agoniado para que a moça não desaguasse ali na sua frente respondeu sem pensar.

- Eu posso te deixar em casa.

E ela mudou de semblante na hora. Chegou a dar um passo para frente como que se fosse o abraçar mas parou no meio do caminho e só apertou o olho com um sorriso e disse “obrigada”. Otávio desejou que ela tivesse abraçado, mas não disse nada, só a esperou fechar o carro para irem juntos até o seu. Já dentro do carro ele comentou que conhecia um mecânico que consertava os carros do pai e podia passar o contato quando chegasse em casa. Letícia foi ficando mais tranquila e em poucos minutos já estava fazendo Otávio rir no caminho para casa. Ela era bastante extrovertida e sentia necessidade de preencher o silêncio que o rapaz deixava descrevendo como ela e a mãe estavam lidando com a quarentena, como fazia para economizar tempo em dia de supermercado e como reagiu quando um primo chegou de supetão em sua casa.

Otávio ouvia a moça falar com o espírito alegre, como se animado por alguma música, e não a interrompeu em nenhum momento. Ele não lembrava da última vez que tinha passado um tempo assim com alguém — e sendo esse alguém assim como Letícia era ainda melhor. O percurso até a casa dela passou rápido e logo tiveram que se despedir mas os dois estavam satisfeitos. Em casa Otávio enviou o contato do mecânico por mensagem e se ofereceu para levar e buscar ela nos dias em que o carro estivesse consertando. A moça aceitou e agradeceu. Naquela noite Otávio dormiu cedo e não sentiu nenhuma palpitação nem sensação de falta de ar.

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Larissa Seixas

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